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Oompa Loompas não tem nomes

O sujeito despersonalizado no sistema empregatício: a alienação do sujeito no trabalho criativo nas novas dinâmicas organizacionais e nas relações de trabalho autônomo, na era da transformação digital


Publicação original em 08 de Outubro de 2024 neste blog. Por Márcio Leite.


Acabo de sair de um encontro do Clube do Livro de Design, "Todo mundo é empreendedor. Quem está a salvo?”, no Sesc Av. Paulista, organizado pela designer e editora Tereza Bettinardi, onde tive a oportunidade muito especial de ouvir o sociólogo e curador de conhecimento Túlio Custódio e Miriam Chnaiderman, cineasta e psicanalista. 


O encontro de pouco mais de duas horas trouxe reflexões e provocações a partir do livro “Emprecariado” de Silvio Lorusso, publicado no Brasil pelo Clube do Livro do Design, a partir de onde a conversa debateu a realidade dos trabalhadores criativos no atual cenário econômico, político e social.


A seguir compartilho meus grifos e insights a partir das falas e discussões dos dois convidados.


Arte sobre cena do filme A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971), do diretor Mel Stuart.



No mundo contemporâneo, vivemos um paradoxo. O sistema neoliberal oferece ao indivíduo uma ilusória promessa de liberdade, ao mesmo tempo em que o aprisiona nas lógicas impessoais do mercado. Isso é particularmente evidente no campo do trabalho criativo, onde a flexibilização, a padronização e a aceleração do ritmo de produção resultam em uma despersonalização profunda do sujeito. 


O indivíduo, antes dotado de potencial criativo e singularidade, dentro de uma estrutura organizacional torna-se uma engrenagem em uma linha de montagem, uma linha numerada numa lista de tabela Excel num departamento de RH, perdendo-se em meio a demandas operacionais que alienam sua subjetividade. Softwares que operam como uma linha de montagem, em sistemas e abordagens de execução do trabalho que não deixam brechas para a expressão original surgir.


Porém, também sob o discurso de empoderamento, liberdade e flexibilidade do empreendedorismo, se vê preso e espoliado nas relações incertas e imprevisiveis das relações de trabalho precarizadas.


Ao se debruçar sobre essa problemática, a psicanálise parece oferecer um viés analítico crucial para entender os impactos psíquicos e emocionais dessa transformação nas relações de trabalho, num agressivo e crescente contexto neoliberal em que estamos vivendo.



A Ilusão de Liberdade no Trabalho Criativo

O discurso neoliberal, com sua ênfase na autodeterminação e na liberdade individual, cria uma falsa sensação de controle sobre a própria vida e trabalho. Termos como “autônomo”, “freelancer” ou “empreendedor” reforçam a ideia de que o trabalhador tem liberdade para organizar sua própria rotina, suas escolhas e seu futuro. No entanto, essa “liberdade” frequentemente esconde uma realidade bem diferente: o trabalhador, ao se desvencilhar dos contratos formais, como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), torna-se refém de uma lógica que exige produtividade incessante, metas inalcançáveis e uma constante busca pela satisfação do cliente, muita vezes as próprias corporações que antes eram empregadoras desses mesmos profissionais criativos.


Essa ilusão de liberdade se agrava com a crescente padronização do trabalho criativo. O designer, o roteirista ou o desenvolvedor de interfaces digitais, por exemplo, não são mais considerados artistas que trazem consigo uma visão singular do mundo. Pelo contrário, eles são operários de uma linha de montagem simbólica, trabalhando com “componentes” previamente estabelecidos, como numérica e plasticamente descrito no mercado de UX/UI design - como bem pontuado por Tereza. 


Como citado no debate por Túlio, o autor Harry Braverman, em seu estudo de 1974, já alertava para esse fenômeno, descrevendo como o trabalho de escritório — e, por extensão, o trabalho criativo — se transforma em uma série de tarefas automatizadas e pré-definidas. A habilidade e o talento do indivíduo tornam-se dispensáveis, uma vez que as ferramentas e os processos padronizados permitem que qualquer um execute as tarefas de forma eficaz, independentemente de sua singularidade.


Túlio também levantou várias reflexões importantes sobre os impactos do neoliberalismo no trabalho, especialmente no campo criativo. A partir da análise de Cornel West, ele abordou o conceito de “niggerization” e nas resultantes da inserção de indivíduos negros no sistema capitalista nos anos 50 e 60, onde, ao mesmo tempo que ganham acesso a certas oportunidades com o movimento dos direitos civis, com as possibilidades de algumas pessoas terem acesso à educação. Eles entram nessa lógica individualista de ascensão, se afastam de suas raízes comunitárias e acabam sem pertencer plenamente a nenhum dos dois universos, se sentem desgarrados das suas comunidades e não pertencentes inteiramente ao mundo capitalista.


O paralelo com o contexto brasileiro é bem interessante, especialmente quando se explora a precarização do trabalho, tanto no setor formal quanto no informal. A ideia de “apodrecimento social” como um processo orgânico de degradação ressoa com muitos trabalhadores criativos altamente qualificados, mas que encontram seus talentos e vocações desvalorizados e padronizados pela lógica do mercado. Isso leva a uma “degradação substancial”, onde o trabalho criativo perde seu caráter único e dependente de talento, e se transforma em tarefas mecânicas que qualquer um pode realizar, gerando um esvaziamento da essência criativa.

Os três afetos que Túlio explorou em seus estudos — medo, ansiedade e vergonha — refletem os efeitos subjetivos desse processo. O medo de não conseguir trabalho, a ansiedade com o ritmo acelerado e sobrecarregado do mercado, e a vergonha que emerge da desconexão entre o que os trabalhadores criativos achavam que fariam e o que de fato estão fazendo. Segundo Túlio, esses afetos não são apenas sintomas do sistema, mas motores que ajudam a perpetuar a própria dinâmica de precarização e alienação do trabalho criativo.


Essa análise sociológica amplia o entendimento sobre como a flexibilização e precarização do trabalho afetam não apenas as condições materiais, mas também o sentido de identidade e reconhecimento pessoal, especialmente para profissionais das indústrias criativas. É um campo que realmente merece mais atenção para entender como esses processos se dão de forma estrutural e subjetiva.


Cena do filme A Fantástica Fábrica de Chocolate (2005), do diretor Tim Burton.



O Sujeito Despersonalizado: A Alienação Psíquica

Do ponto de vista psicanalítico, essa alienação no trabalho criativo tem consequências devastadoras para a subjetividade do indivíduo. A psicanálise, especialmente no pensamento freudiano, sustenta que o sujeito se constitui a partir de suas interações com o mundo, com a linguagem e com os outros. No trabalho, o indivíduo projeta parte de sua identidade no que faz, e é por meio do reconhecimento do outro — seja este o empregador, o time, o cliente ou o público — que ele afirma sua existência como sujeito.


No entanto, no sistema neoliberal, essa dinâmica é pervertida. O trabalhador não é mais reconhecido por sua singularidade, mas por sua capacidade de atender às demandas padronizadas do mercado ou da operação onde está alocado. Um executor de tarefas dentro de linguagens e modelos pré-estipulados, uma mera extensão dos sistemas autômatos de produtividade. E em tempos de home office, isolado.

Essa perda de reconhecimento resulta em uma profunda despersonalização do sujeito, que passa a se sentir invisível, dispensável e sem valor, uma vez que sua subjetividade e individualidade é irrelevante para este modelo de operação.


Miriam pontua que, como apontado por Freud, o equilíbrio entre as reivindicações individuais e as culturais é um dos maiores desafios da humanidade. Quando esse equilíbrio é rompido, o sujeito experimenta uma sensação de perda e alienação, sentindo-se como um objeto em vez de um ser humano dotado de subjetividade.


A padronização do trabalho criativo, impulsionada pelas ferramentas digitais e pela inteligência artificial, intensifica a alienação e esvazia o sujeito de sua expressão identitária, de suas aspirações criativas e de sua capacidade reflexiva, comprometendo o sentido mais humanista de pertencimento que o trabalho deveria promover.

Outro ponto interessante trazido no debate foi como as redes sociais ampliam esse processo. Perfis idealizados, modificados por filtros e projetando uma vida profissional de sucesso e felicidade, comemorações virtuais a cada atividade concluída, intensificam a pressão sobre os indivíduos para corresponder a padrões de sucesso inalcançáveis.


Isso, junto com a cultura do “unlock” e dos “sete dígitos em sete dias”, cria um ciclo de expectativas irreais e frustração. Essas narrativas de coachs, muitas vezes ligadas a esquemas de pirâmide e promessas vazias de enriquecimento rápido, perpetuam a ideia de que existe um segredo ou fórmula mágica para o sucesso, quando, na verdade, trata-se de uma exploração ainda maior das inseguranças e ansiedades dos trabalhadores.


A analogia com o trabalho criativo também é relevante. A prática do “gig economy”, onde freelancers trabalham incessantemente em projetos urgentes, é vista como uma forma de exploração que oferece a promessa de grandes ganhos financeiros, mas que, na realidade, cobra um preço alto em termos de desgaste físico e emocional. Isso reflete o modo como a flexibilização do trabalho, tão exaltada pelo neoliberalismo, resulta em precariedade e esgotamento.


Finalmente, a questão das ferramentas e como elas limitam os passos criativos também é uma crítica ao modo como a tecnologia e o mercado moldam o que é possível ou viável dentro do trabalho criativo.


Como ressaltou Túlio, quando um roteirista afirma que, com o auxílio da tecnologia de inteligiencia artificial, consegue escrever vinte roteiros em um dia, estamos diante de um exemplo extremo de como a produtividade substitui a criação genuína. A experiência criativa, que antes envolvia reflexão, experimentação e tempo, é reduzida a um processo automático em que a subjetividade do trabalhador é descartada em favor de um produto rápido e descartável.



 Brinquedo, boneco articulado. Mego Movies Wave - Oompa Loompa (A Fantástica Fábrica de Chocolates, 1971).



A Ilusão Pornográfica e a Morte do Sonho

Em certo ponto Túlio trouxe para a mesa de discussão o autor Byung-Chul Han, em sua obra Sociedade da Transparência, que oferece uma metáfora interessante para essa realidade: a ilusão pornográfica. 


Assim como a pornografia apresenta uma sexualidade explícita e sem camadas, o sistema neoliberal expõe o trabalho criativo de forma crua e direta, retirando dele qualquer possibilidade de sonho ou imaginação. O sujeito não é mais convidado a construir fantasias ou a projetar seus desejos no que faz; ele é impelido a produzir e consumir imediatamente, sem espaço para a reflexão ou para a construção de um significado mais profundo.

Essa “pornografia” do trabalho criativo reflete-se na forma como os produtos são consumidos. O carro que aparece na propaganda não é apenas um objeto, mas uma promessa de liberdade, de aventura, de realização. No entanto, essa promessa é vazia, pois o sujeito, ao adquirir o carro, não se liberta; ele se torna ainda mais preso às exigências do sistema, preso no trânsito da cidade, longe das paisagens idílicas apresentadas nas propagandas. Assim, o sujeito, despersonalizado e alienado, perde a capacidade de sonhar, de criar fantasias e de encontrar sentido em seu trabalho e em sua vida.



O Grande Masturbador (1929) óleo sobre tela de Salvador Dalí



Conclusão: Resgatar o Sonho e a Subjetividade

Ao propor `a mesa uma reflexão sobre os atuais modelos, processos e transformações organizacionais proposto por consultorias globais, falei de como as novas relações de trabalho e atual modus operandi (a partir da transformação e aceleração digital durante a pandemia de Covid 19) expurgam continuamente um contingente imenso de trabalhadores - os mesmos que antes eram motivados por campanhas de endomarketing para busca de aprimoramento meritocrático, para crescimento na carreira corporativa - e agora os mantém nessa lógica neoliberal "empreendedora", sozinhos, os destituindo de seus propósitos pessoais para continuar a atender à entidade do mercado, mas agora "do lado de fora".


Miriam então colocou que a psicanálise oferece uma chave importante para resistir a essa despersonalização: o resgate do sonho.


O sonho, como Freud nos lembra, é uma forma de acessar desejos profundos, de construir narrativas que transcendem a realidade imediata. No contexto do trabalho criativo, resgatar o sonho significa recuperar a capacidade de criar com profundidade, de encontrar significado nas camadas sutis da experiência e de resistir à tentação da produção massificada e superficial.

A grande luta parece ser a de resgatar sonhos autênticos, de cada indivíduo, em meio a uma cultura que tenta constantemente impor ideais externos e ilusórios.


Em uma última análise, Miriam coloca que a luta pela subjetividade no trabalho criativo é também uma luta pela dignidade humana. É uma luta para que o indivíduo não seja reduzido a uma engrenagem, mas seja reconhecido como um sujeito capaz de sonhar, de criar e de transformar o mundo ao seu redor.



Menino Geopolítico Observando o Nascimento do Novo Homem, (1943) óleo sobre tela de Salvador Dalí. 



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Referências




LIVRO / Emprecariado — Todo mundo é empreendedor. Ninguém está a salvo. https://clubedolivro.design/products/emprecariado


LIVRO / Sociedade da transparência. Byung-Chul Han (Autor), Enio Paulo Giachini (Tradutor), (2016)


TEXTO / Trabalho e capital monopolista, de Harry Braverman (1920-1976)


ARTIGO / A deprimente verdade sobre os Oompa Loompas.


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